Quando Ebony lançou seu segundo álbum, Terapia, no começo de outubro, eu estava às voltas com a angústia de completar mais uma década de vida e teria passado direto pelo disco se não fosse um comentário banal sobre o lançamento em um dos meus vários grupo de zap.
Em um primeiro momento, não entendi porque o álbum me incomodou tanto. Ao mesmo tempo, não consegui largar, e deixei o disco na minha lista por semanas. Foi só escutando Espero que entendam que a minha ficha caiu.
Nessa diss, que movimentou o (X)twitter por uns dias, ela senta o sarrafo em um monte de grandes nomes masculinos do rap nacional. Mas o trecho que me pegou nessa música, inicialmente, foi “Eu também fumo um e quero falar merda, pô”. Foi ali que entendi que o que me incomodou e me seduziu em Ebony foi a tranquilidade com que ela fala de desejo.
Mais desejantes que desejadas
O desejo feminino é, via de regra, tratado como algo a ser reprimido e escondido. Em Terapia, não é apenas o desejo sexual que aparece nas letras: dinheiro, viagens, sucesso, reconhecimento, está tudo ali entre Megalomania e Hentai. Ou, como ela também lança em Espero que entendam, “eles vão ter que engolir a vitória da Ebony”
A fluminense não é a primeira artista a trabalhar com o desejo como matéria-prima, é claro. Madonna sempre usou a libido como material e o primeiro lançamento que fez pelo seu selo/produtora Maverick é justamente o disco Erotica, junto com o livro Sex. A crítica foi rápida em dizer que a rainha do pop tinha ido longe demais, enquanto ela levava o desejo e o fetiche para passear em em turnê mundial, num período em que a abordagem do cuidado com o HIV colocava o prazer como vilão da saúde e usava o controle e repressão do corpo (e de alguns corpos específicos, em especial) como única forma de sanitizar o mundo.
Antes dela, Lydia Lunch já tinha entendido que a capacidade de despertar desejo, longe de ser um risco para os corpos femininos, era um mecanismo de poder. É recusando o papel de vítima após sofrer violência que Lydia Lunch passa a usar o próprio corpo como arma em uma guerra que nunca acaba, como conta no documentário de 2021.
A escritora e cineasta Despentes narra uma experiência parecida em seu livro Teoria King Kong (relançado recentemente no Brasil pela n-1 edições). Após passar por um estupro, ela lê um artigo de Camille Paglia que coloca o estupro como um risco que se deve aceitar correr se você é uma mulher que deseja sair de casa e circular livremente. É a partir desse ponto que Despentes passa a discorrer sobre o desejo como potência, principalmente o desejo de corpos dissidentes numa sociedade cis-hetero-patriarcal-racista-capitalista.
Esses são apenas alguns exemplos. Ainda que pareçam ações isoladas, há muitas mulheres por aí dando vazão e visão aos seus desejos.
Enraivecida, confusa e sexualmente voraz
Assim como tantas pessoas, fiquei obcecada quando assisti Fleabag pela primeira vez. Procurando material sobre a série, achei um artigo português com esse título reducionista e agressivo. Durante um tempo, foi meu nick no (x)twitter e só parei de usar porque foi a única época da minha vida em que meu inbox foi tomado por cantadas inconvenientes.
Esse vídeo faz uma interessante análise psicanalítica do programa, mas, novamente, o que me chama a atenção são as palavras escolhidas bem no começo: “Fleabag é uma série que desafia todos os código e normas do feminino: sedutora, brilhante, inovadora, genial.” A nós, esse grande grupo do feminino, cabe a sombra, a cópia, a humildade, o ser seduzida.
Quando o desejo de Ebony me causa incômodo e movimento, um movimento muito parecido com o provocado pelo Eros mitológico, é porque ele apresenta a minha própria falta/repressão do desejo. É no espelho de outra mulher que eu consigo ver a urgência em despertar minhas próprias vontades.
Não por acaso, a primeira vez em que li o Teoria King Kong, travei por muito tempo na introdução:
É daqui que escrevo, como uma mulher não sedutora mas ambiciosa, atraída pelo dinheiro que ganho sozinha, atraída pelo poder de fazer e de recusar, atraída pela cidade mais do que pelo campo, sempre excitada pelas experiências e incapaz de me satisfazer apenas com a descrição que me fazem delas. Eu não me importo de parecer dura com os homens que não me fazem sonhar. Não me parece nem um pouco óbvio que as meninas sedutoras se divirtam tanto assim. Sempre me senti feia, e me sinto confortável com o fato de que isso tenha me salvado de uma vida de merda, aguentando caras simpáticos que nunca teriam me levado mais longe do que à porta de casa. Sou feliz comigo desse jeito, mais desejante que desejada.
Oh bondage! Up yours!
Quando descobriu que eu iria completar 40 anos, um amigo me perguntou como eu estava me sentindo sobre isso. Respondi que estava bem, mas tinha muito medo de perder minha capacidade de desejar.
No fim do ano, nos sentimos pressionados a criar uma lista de desejos para o ano seguinte, e penso que debater o lugar e a representação do nosso desejo e da nossa capacidade de desejar deve estar na lista de prioridades.
Para esse próximo ciclo, desejo que você deseje e se arrisque muito. A vida está lá fora e vivê-la, com todos os riscos intrínsecos, é o melhor a se fazer.
Lendo, vendo, ouvindo
1. Janelle Monáe - Dirty Computer e The Age of Pleasure
The age o pleasure foi lançado esse ano e Dirty Computer é de 2018. Juntos, eles traçam uma bela narrativa sobre desejar e estar apaziguada com isso. Além disso, The age of pleasure é uma delícia de disco para ouvir nesse verão de ebulição climática.
2. Miley Cyrus and Her Dead Petz
Após o lançamento Wrecking Ball e de fazer twerk no prêmio da MTV, Miley gravou esse disco em parceria com o The Flaming Lips, de forma independente, para audição gratuita no Soundcloud. Esse álbum rescende ao desejo de uma mulher que tomava as rédeas da própria vida após um relacionamento tóxico (que até hoje aparece em suas letras) e a finalização do ciclo Hannah Montana.
3. Laura Cohen - Cu Riscado
Lançado em parceria com a Alecrim Edições no começo deste dezembro, Cu Riscado, de Laura Cohen (que teve seu Caruncho premiado esse ano) parece a história de uma avó que morreu, mas é a história de uma tia que colocou seu desejo acima do controle da família e dos questionamentos de uma neta/sobrinha que quer saber mais. A edição ficou linda e o texto é de tirar o fôlego.
4. Itziar Ziga - Devir Cachorra e A feliz e violenta vida de Maribel Ziga
Essa dupla de livros da escritora basca fala sobre amizades, comunidades, violência e, principalmente, sobre a complexidade e as variadas possibilidades de ser mulher no mundo. Para ler, reler e emprestar para as amigas.
5. Imposturas Filosóficas - Liturgia dos corpos em contato
Comecei a ouvir esse podcast na minha busca para fora do natal e acabei navegando por vários assuntos. Nesse episódio específico, eles ampliam o debate sobre corpo, sexualidade e desejo.
Se você chegou até aqui, muito obrigada pela leitura. Caso você acompanhe a newsletter há algum tempo, deve ter percebido uma pequena mudança no título.
Já tem algum tempo que meu desejo tem me levado a falar sobre mais do que mulheres na música. Nessa edição, ensaio um caminho para essa ampliação de temas e assumo que sou a mulher à frente desses escritos.
Espero que a conversa continue te interessando. :)
A frequência desse boletim é ditada pela vontade e pelo tempo. Nos vemos em breve.
Como diz uma amiga minha psicanalista "é preciso muito coragem para bancar o desejo". E que inveja quem tem essa coragem causa em que não tem, né?
Ótimo texto, beijos
Mulher, você é um poço dos desejos e desejo te reencontrar logo <3